Um momento histórico revolucionário, fundamental para a moda como a compreendemos hoje, acontecia na noite de 28 de novembro de 1973, em Paris. Mas pensa em revolucionário a nível de sacudir as tradicionais estruturas da alta-costura francesa – tida como referência absoluta por séculos. Para iluminar este evento tão importante com um relato preciso e questionador, a jornalista e crítica de moda Robin Givhan escreveu “A Batalha de Versalhes: a noite que mudou a história da moda“ (2017, Zahar, 300 p).
Na leitura, você vai encontrar uma verdadeira aula de história da moda, com contexto social, descrições impecáveis e reflexões poderosas sobre representatividade e papel da moda – dois temas que têm tudo a ver com o momento que estamos vivendo agora. Tudo isso, através de um texto leve e direto, que praticamente pega pela mão e nos leva a revisitar o período de pertinho. Ficou interessada? Pois eu conto tudo sobre essa leitura essencial para quem gosta de moda agora!
Com o objetivo de angariar fundos para a restauração do famoso palácio do rei Luís XIV, o evento foi um fashion show no qual cinco ícones da alta-costura francesa (Yves Saint Laurent, Hubert de Givenchy, Pierre Cardin, Emanuel Ungaro e Marc Bohan, representando a Dior) e cinco designers exitosos dos Estados Unidos (Oscar de La Renta, Bill Blass, Anne Klein, Halston e Stephen Burrows) desfilaram suas peças para uma plateia recheada com o crème de la crème da sociedade. Para você ter uma ideia, entre os convidados estavam nada menos do que a princesa Grace de Mônaco, Paloma Picasso e Andy Warhol.
Enquanto o evento era o holofote perfeito para a recente moda autoral criada nos Estados Unidos, já que, até o final da década de 1960, o mercado fazia apenas cópias literais do que era criado em Paris, os franceses se preocuparam em reverenciar a história com suas marcas registradas: o glamour, a exclusividade e a pompa. Esse embate entre a tradição e o contemporâneo foi um dos pontos mais importantes do evento, que trouxe grandes mudanças para o campo da moda. Entre elas estão uma forma mais dinâmica de apresentar os desfiles, uma transformação no papel das modelos, que passam a expressar suas personalidades ao invés de serem ‘meros cabides’ e, também, uma nova forma de ver e pensar a moda.
Estudar/compreender a moda de um determinado período – seja o passado ou o incerto presente – exige muito contexto cultural. Entre as inúmeras perguntas a serem respondidas estão quem são essas pessoas, quais papéis desempenham, onde estão na hierarquia, quais são suas lutas, anseios, desejos, como e o que expressam e por aí vai. Pois Robin explica tudo, montando uma colcha de retalhos tão unida que faz a gente quase que ser transportado para os anos 1970 – ai, ai, bem que eu queria.
Dos motivos pelos quais a França é considerada o berço da moda à trajetória dos designers; da história de cada modelo negra que desfilou em Versalhes à criação da indústria estadunidense de moda – que não tinha nada de glamourosa como a de hoje sugere, o livro narra e explica os acontecimentos de forma linear, com detalhes que devem ter exigido uma pesquisa ABSURDA. Para você ter uma ideia, até chegar na noite da “batalha”, você vai passar por 10 capítulos – aproximadamente 169 páginas. Com a minha breve experiência como pesquisadora, fazendo o TCC rs, eu já fico perplexa só de imaginar.
Embora o conteúdo seja incrível por si só, o texto de Robin é um dos grandes destaques de “A Batalha de Versalhes” e não poderia ficar de fora da minha resenha. Com uma riqueza de detalhes, ela consegue apresentar uma pintura vívida do que aconteceu – o que é bem importante, já que não existem muitos registros fotográficos do evento. As descrições da era disco, dos protestos, do que as pessoas vestiam, sentiam e queriam é primorosa. No capítulo dedicado à batalha propriamente dita, nós conseguimos, através de suas palavras, ver o evento acontecendo e sentir a aura de excitação crescente que o show provocou.
Dos designers às modelos, a autora apresenta uma infinidade de personagens sem ser superficial ou confundir o leitor. Traz curiosidades, detalhes e trechos de entrevistas de forma fluída e perspicaz, em um texto inteligente e fácil de assimilar. Fiquei tão fissurada que reorganizei minha agenda pra conseguir ler todos os dias de manhã antes de fazer qualquer outra coisa. E admito que me senti bem mais inspirada. Desculpa ser tiete demais, mas, assim que você ler, vai perceber que é inevitável .
Vamos fazer um teste rapidinho. Se eu listar as seguintes pautas: Libertação feminina; manifestações contra o racismo e o abuso policial para com pessoas negras periféricas; urgência em ter uma maior representatividade negra nas revistas, jornais, tv, publicidade, você diria que eu estou falando dos anos 1970 ou de 2020? A resposta é: dos dois.
Ao contextualizar as manifestações de Detroit, em 1967, e a forma com que a mídia e a moda foram consideradas espaços potentes e fundamentais para diminuir a desigualdade/segregação, Robin não só apresenta o quadro mais “plural” pintado em Versalhes – 10 das 36 modelos estadunidenses eram negras – mas também tensiona o quanto isso era uma atitude realmente desejada ou um surfar na onda das manifestações populares – outra pergunta que temos nos feito com maior frequência nos últimos tempos.
Em Versalhes, a personalidade vanguardista e o gingado das modelos negras, que dançavam pela passarela e davam vida às roupas, foi o grande destaque, encantando da plateia aos designers franceses. Mas será que essas mesmas modelos, verdadeiras protagonistas deste momento histórico, tiveram o merecido espaço para prosperar na moda depois do triunfo? Tem que ler pra saber mais, mas você já deve conseguir imaginar a resposta: não tiveram. Entre as críticas diretas e cruas de Robin, estão temas centrais para todas as pessoas que trabalham/gostam/pesquisam a moda: apropriação cultural; embranquecimento dos símbolos e criações vindos das comunidades negras; a dificuldade que todos esses personagens reais apresentados no livro têm de alcançar o sucesso; como a moda é convenientemente transgressora, mas, na hora de realmente fazer a diferença, continua a mesma valsa entre as mesmas pessoas privilegiadas. Fica mais uma citação super pertinente – já prepara a marca texto porque tem muuuuita coisa pra destacar na obra.
Eu poderia seguir horas falando sobre como “A Batalha de Versalhes” é um livro maravilhoso e essencial nessa resenha, mas acho que consegui abordar alguns dos principais pontos. Gostou da dica? Clicando aqui você pode ver um documentário que encontrei no Youtube sobre a história, com entrevista de algumas modelos que estavam presentes em Versalhes. Infelizmente, o vídeo está em inglês e sem legenda, mas quem se garantir, vale o clique. E aqui fica um link pra acessar os textos da Robin no The Washington Post.
Ah! Quem ler, não esquece de me contar o que achou. E pra quem está querendo dicas de leitura que não tenham a ver com moda, indico esse post aqui, com 6 livros sobre mulheres fortes <3