O aeroporto está lotado. Meu vôo está prestes a sair. Pessoas correm em direção às suas famílias e amigos com lágrimas nos olhos. Pessoas caminham com expressões preocupadas, celulares que nunca param e ternos impecáveis. Impermeáveis. Eu? Eu sigo aqui sentado, com a mala cheirando ao seu vinho tinto e a camisa manchada por seu inconfundível batom vermelho. Sim, eu ainda não limpei a mancha. Sim, eu ainda não limpei você. Exatamente. Você. E nem adianta olhar para o lado, tentando colocar atrás da orelha aquela mecha rebelde que insiste em cair no rosto. Enquanto isso, estou aqui, como um idiota, vendo todas as pessoas passarem, sem conseguir, também, passar. Sem conseguir, também, pensar. Eu detestaria dizer que você me balançou, Celine. D-E-T-E-S-T-A-R-I-A. Você não merece clichês, mas o que faço se parece que foi exatamente isso que aconteceu? Eu virei de cabeça pra baixo com sua calmaria e seu riso surpreendemente escandaloso. Quando voltei, era esse cara meio apático meio inquieto que não sabe o que fazer, mas precisa fazer alguma coisa.
É provável que você esteja sentada em seu trem, ou chegando em casa e colocando as plantas para pegar sol, enquanto conversa com elas, até mesmo com Clarissa, que é a que você detesta, “Ela simplesmente me odeia, eu sinto.” Talvez esteja me escrevendo uma carta, com suas frases rabiscadas que soam muito melhor que meus trabalhos mais elaborados. Talvez não tenha feito nada disso. Apenas sentou no sofá da sacada e sorriu para as vinte e quatro horas mais sem sentido. E olha que sua vida não é a melhor em ser trivial. Você se acha bagunçada. Eu te acho poesia. “É por que poesia não faz sentido?” Talvez. Mas eu não me importaria em ler cada verso, mil vezes, e rabiscar as páginas, como a gente fazia no colégio, só pra não perder cada detalhe. Logo eu, que sempre gostei de contos.
Você lia em sua cabine, com os joelhos no peito e um nó no cabelo. Parecia tão dentro da história que eu queria levantar e pedir para o casal da frente fazer menos barulho. Ao invés disso, derrubei meu café inteiro em sua mesa. Caralho, o marca páginas! Você sorriu e pareceu não ligar. Me ofereceu outro café. Contou a história do livro. Era seu favorito. Eu, qualquer outro dia, acharia mais um romance qualquer, no momento, adorei. Devia ser o jeito com que você contava. Agora pensando, acho que devia ser você. A madrugada passou. O casal continuava brigando. Você contou da sua banda de punk com dezesseis anos, depois de muito protestar, cantarolou o maior sucesso. Aplaudi. Desenhei na espuma de seu novo café. Contei da minha cidade de interior. De minha fazenda. Do curso de gastronomia. De todas as minhas teorias sobre casais que brigam demais. Você ouviu. Não como as pessoas costumam, balançando a cabeça enquanto pensam no que precisam comprar quando passarem no mercado, sua atenção era minha. É bem verdade que sempre gostei de atenção, mas ver você rindo, de verdade, do meu tombo mais estúpido era surreal. Eu caíria, agora, se você fosse rir. É estúpido? Nem me fale. É verdade? Nem pergunte. Mas é sim. Quanto mais minha estação se aproximava, mais eu queria que tivesse derrubado o café antes, logo que te vi sentar. Estava chegando. Estava chegando. Estava chegando. “Eu preciso descer, foi um prazer…” “Celine.” Você sorriu. Não perguntou meu nome. Não disse que tinha sido um prazer. “Certas coisas perdem completamente o charme se são ditas” você explicaria enquanto jantávamos em um restaurante minúsculo. Virei as costas e tentei descer. Nós dois sabemos que não consegui. “Eu sei que talvez não faça sentido nenhum, você pode dizer não, espero que não diga, mas pode, você não quer dividir esse dia comigo?” Mais uma vez você sorriu. Mais uma vez não perguntou. Pegou sua mala e segurou minha mão.
“Ainda não acredito que você aceitou. Imaginei uma lista com dez bons argumentos para te convencer.” “Pra que? É tudo muito simples. Aliás, sempre quis conhecer Viena.” Conhecemos. Nos perdemos em ruelas, dançamos com as pessoas na calçada, você fez um pedido em cada uma das pontes e deu uma moeda para cada artista. Depois contou que já tinha sido um deles e que trocava canções por moedas. Não cantava. Escrevia. Te dei uma moeda. Você sentou e escreveu, por quinze minutos, então me entregou uma canção sobre um cara com o cabelo sujo que era feito de algodão. Era linda. Você sorriu sem jeito para o elogio e decidiu que era hora de corrermos. Corremos. Jantamos duas vezes. Tomamos seis sorvetes. Dividimos nossas histórias por cada parte da cidade. Parecia que eu já conhecia seus pais. E suas amigas que ficariam chocadas por você ter aceitado meu convite. Você sabia o nome de cada um dos meus colegas da editora, do gato da minha ex-namorada, do motivo pelo qual eu tinha terminado. Você me deixou te beijar, mesmo que meus argumentos para que o beijo acontecesse não passassem de coisas sem sentido relacionadas ao pôr do sol. Argumentos para beijar alguém. Eu tinha voltado a ter treze anos ou você que era incrível demais para simplesmente ser beijada? “Eu sou incrível demais, óbvio.” Você gargalhou. Eu sorri disfarçando. No fundo, estava concordando com você em cem por cento.
As horas foram passando, você já vestia meu casaco e, pela primeira vez desde tudo, pareceu se sentir exatamente como eu. “Você já parou pra pensar que nunca mais teremos uma conversa como essa? Um dia como esse? É, praticamente, um chute no saco dos próximos dias, sem que eles possam se defender.” “Nós podemos…” “Será que podemos? Será que a magia não está em exatamente só termos uma noite e você não descobrir que eu não gosto de dormir abraçada?” “Sendo assim, um brinde a essa noite e às horas que ainda temos juntos.” Foi o brinde mais agridoce da história dos brindes. Fingimos não perceber. Jantamos pela terceira vez e deitamos em um parque. Você me beijou. Abri seu vestido.. Vi as estrelas através de seus cabelos caindo no rosto. Te abracei. Você dormiu. Acordamos. Não só para o novo dia, mas também para nosso tão próximo adeus. As conversas não eram mais tão alegres, as ruas bem mais cinzas e silenciosas. E então, depois de tanto evitar, segurava sua mala na plataforma vazia. “Então, parece que chegou a hora. Foi um prazer, Jesse.” Eu congelei. Não podia, não podia, não podia te deixar ir. “Eu não posso. Seria um chute no saco de todas as conversas que eu vou ter até aqui.” Sua gargalhada barulhenta ecoou. Seis meses. Novamente essa estação. Você me beijou pela última vez e assim ficamos combinados. Sendo assim, por que não consigo levantar dessa droga de cadeira e sentar em minha poltrona horrível? Você, enquanto me olhava pela última vez pela janela parecia estar lidando tão bem…
Talvez eu esteja errado e tudo que preciso fazer é deixar isso de lado, voltar para minha casa vazia e meu cachorro pequeno demais, pensar nesse último dia como possivelmente uma história sensacional para contar para meus filhos quando eles acharem que sempre vivi preso em um escritório. Talvez eu esteja certo e já deva comprar a próxima passagem para Viena, para daqui a seis meses, esperando que as semanas passem rápidas e você realmente esteja em nossa estação, com a mochila repleta de desenhos e os óculos grandes demais para seu rosto tão delicado. Talvez eu não me importe com mais nada e deva ficar aqui, sentado, por seis fucking meses. Talvez o melhor seja entrar em outro avião e correr atrás de você. Será que você quer que eu corra? Você não pode não querer. E não é nem só por ter me segurado tão perto até o último segundo antes de partir. Nós tivemos o dia mais incrível de nossas vidas. Como passar o resto do tempo sabendo que o melhor já passou? Talvez eu esteja exagerando, me desculpe, só não consigo acreditar em tudo que você é. Não é justo que você seja tão incrível. Não é justo que tudo pareça tão incrível perto de suas pintinhas nas bochechas. Tudo. Até mesmo eu, que nunca pareci ter muita graça. Meu vôo acaba de decolar. Eu? Eu estou perdido e, sinceramente, nenhuma dessas placas e orientações parece ajudar.